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Revista da Cultura * Matéria de capa. Seção: Tecnologia. Páginas 22 a 24.

Data da publicação: Outubro de 2015 * Edição n° 99


Desconectados. Reportagem por Adriana Paiva

Eles ficam tão bem longe de seus telefones celulares e sem internet que é comum serem vistos como excêntricos. Mas, atentos às consequências da hiperconectividade, o que eles buscam é o uso consciente das vantagens do mundo digital


POR: ADRIANA PAIVA


O processo é inexorável: estamos imersos em uma era de altíssima conectividade. Cabe-nos aprender a lidar com as implicações de uma realidade que está longe de ser compreendida em sua magnitude. Se nossos smartphones, por exemplo, já nos possibilitam a realização de tarefas inimagináveis até poucos anos atrás, a quantidade de dispositivos aos quais esses aparelhos estão aptos a nos conectar só tende a crescer.

No Brasil, segundo levantamento da Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel), o número de linhas de telefonia móvel ativas, até o fechamento desta edição, era de 281,4 milhões. Já no que diz respeito à comercialização de aparelhos celulares, embora as vendas tenham experimentado uma queda no trimestre junho/agosto, isso se deu apenas em relação aos modelos mais simples e de baixo custo. De acordo com dados de duas das maiores fabricantes do país, os brasileiros estão comprando aparelhos cada vez mais sofisticados. Aqui, como em outros países, o que se observa é que tarefas antes realizadas em computadores pessoais, laptops ou tablets estão migrando, em ritmo acelerado, para os smartphones. E assim, à distância da mão ao bolso e com desempenho cada vez mais turbinado, passamos a ter, além daqueles recursos já banalizados, os serviços financeiros, a “carona remunerada”, nossos programas e séries de TV preferidos e uma lista interminável de distrações e regalias. E por que ainda reservaríamos ao telefone móvel a função para a qual ele foi originalmente concebido, se podemos conversar por um sem-número de aplicativos e redes sociais?

O fato é que existe um contingente cada vez mais numeroso de pessoas inclinadas a esquecer um pouco de seus smartphones e a afrouxar as amarras com o mundo digital, trocando parte de suas decantadas maravilhas por prazeres simples como a boa e velha comunicação tête-à-tête e – por que não dizer? – o silêncio.

Há quem procure soluções temporárias, como contratar pacotes de “desintoxicação digital” em hotéis e resorts espalhados pelo planeta, locais onde, assim que chegam, os hóspedes são instados a desligar seus gadgets. E ali, além de se dedicarem a atividades como ioga e meditação, revivem práticas que já não eram capazes de ter senão pela mediação de câmeras de celular, como, por exemplo, estar em contato com a natureza. Em Paraty, litoral fluminense, uma pequena vila de pescadores, também conhecida como a “Praia do Detox Digital”, afina-se com essa proposta, recebendo hóspedes por períodos de três a quatro dias.

Há também quem, partindo para soluções duradouras, já tenha conseguido reformular, completamente, sua relação com a internet e outras ferramentas digitais. Este é o caso da artista plástica Renata de Andrade, 55 anos, nascida em Barretos (SP) e radicada em Amsterdã desde 1988. “Fui usuária pesada de todas as redes: Facebook, Twitter, Google+”, conta. E tal era o volume de informações que ela postava em seus perfis que era frequente seus contatos demonstrarem desconforto. Renata, entretanto, não tardou a concluir que também ela não vinha sendo capaz de aproveitar da melhor maneira as informações que por ali circulavam. “Me viciei rapidamente nos sites de notícias”, revela. “E não apenas notícias sobre o que estava acontecendo mundialmente, mas também conteúdos relacionados a interesses que eu tenho em áreas como ecologia, arte e literatura. Essas coisas que te ocupam e, quanto mais conhecimento se tem, mais prazer você obtém com elas.” A essa altura, Renata admite, suas principais fontes de leitura estavam na internet. A constatação de que o tempo excessivo passado online já a impedia de dispensar atenção a outras atividades importantes foi o que a levou, no final do ano passado, à medida radical de abandonar a maioria das redes nas quais ainda mantinha perfil. Ela lista ganhos advindos da decisão: “Agora, estou lendo cinco livros ao mesmo tempo. Livros impressos”, reforça. “Quanto mais você faz, mais tempo você quer. Então, as prioridades vão se empurrando.”

Outro fator que também colaborou para Renata se tornar menos assídua na internet foi a necessidade de dedicar mais tempo e energia a cuidados com a chácara que ela e sua companheira mantêm nos arredores de Amsterdã. “É um terreno com uma casinha e o resto é tudo vegetal – legumes, verduras, flores. A gente está plantando, o que também passa a ser uma rotina. Faz bem ter de ir para esse lugar lindo, tranquilo e fora da cidade”, ressalta, acrescentando que, do loft onde moram, no centro da capital holandesa, até o sítio, elas não pedalam por mais do que 15 minutos. E tão conveniente quanto: lá não tem wi-fi.

Em São Paulo para cuidar de detalhes referentes ao lançamento de Cavalo das almas, seu segundo livro, a artista também realiza, neste mês, intervenções em grafite pelas ruas da metrópole.


GESTÃO DO TEMPO


O paulistano Alexandre Franzin, 36 anos, terapeuta e coach em desenvolvimento pessoal e de carreiras, relata também já vir, há algum tempo, empreendendo esforços no sentido de estar menos à mercê da internet e de outros aparatos tecnológicos.

Ação que se reflete tanto em seu trabalho com grupos e nos atendimentos individuais quanto no seu dia a dia. Entre as medidas que lhe possibilitam se manter em relação saudável com a tecnologia, ele cita a disciplina de desligar o computador muito antes de ir dormir para conectar-se consigo mesmo e meditar. “Tomo nota da minha rotina em um caderno, descrevo como o tempo foi consumido positivamente e onde tive gasto desnecessário de energia. Este exercício me ajuda a ficar atento.”

Alexandre conta ainda que, há pouco menos de três meses, trocou um celular de limitados recursos por um iPhone, mas somente porque o ganhou de presente. E que suas tentativas de manter um perfil profissional no Facebook, por exemplo, não foram adiante. Seu telefone, ele diz, continua a cumprir a função básica de fazer e receber chamadas. Função que, por uma questão de economia, hoje também é combinada ao uso do Whats-App, um dos poucos aplicativos instalados no aparelho. Afora por esse conforto, seu aparelho poderia ser confundido com o de um frade franciscano. “Vez ou outra, acesso e-mails. Mas não tiro fotos, não gravo vídeos, não tenho Instagram, nem Waze ou Facebook. E me sinto muito feliz por isso”, assegura.

Embora crítico à onipresença dos smartphones, Alexandre diz que tenta não ser incisivo quando percebe, por exemplo, que os jovens com quem trabalha excedem-se no uso dos celulares. “Evito: ‘João, desligue o celular, ou: ‘ Você não sai do celular, né?’ Procuro ir por outro caminho: ‘Galera, vamos rever o que estamos fazendo com o nosso tempo e com a nossa atenção!’”

Sem pretender modificar muito o ritmo em que vem se aproximando das vantagens do mundo digital, o terapeuta lança, ainda neste mês, um projeto online de educação e desenvolvimento pessoal intitulado A arte do simples. “Vai ser um desafio pra mim, mas aqui estamos!”


Box: COMO FICA A NOSSA MEMÓRIA?


De que maneira a nossa memória vem sendo afetada pelo avanço exponencial da tecnologia? Essa é uma questão que, volta e meia, ressurge na rotina de atendimentos da psicoterapeuta cognitiva Dora Sampaio Góes, vice-coordenadora do Grupo de Dependências Tecnológicas do Ambulatório Integrado dos Transtornos do Impulso, vinculado ao Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas. Pioneiro, no Brasil, em estudo e tratamento de impactos e consequências do uso desordenado de tecnologia, o grupo, que atende pacientes de diversas faixas etárias, tem, segundo Dora, recebido especial procura por jovens adultos e adolescentes levados por seus pais. Um dos motivos da busca são problemas relacionados ao desempenho nos estudos. Não raro, prejudicado pela sobrecarga de informações e por uma ilusão muito comum entre os mais jovens: a de que eles seriam capazes de conciliar várias tarefas simultaneamente. Não são. Pelo menos não se a meta for realizar todas as tarefas com eficiência, costuma advertir a psicoterapeuta. Sobre a maneira como as informações são apreendidas, ela diz: “Enquanto na leitura via internet as áreas cerebrais ativadas relacionam-se à tomada de decisão – abro ou não aquele link? –, ao ler um livro, eu ativo partes do cérebro ligadas à reflexão e à memória de longo prazo”. E finaliza, recorrendo à analogia: “Quando absorvo um monte de informações de uma vez, tudo no meu armário cerebral fica uma bagunça. Assim, na hora em que preciso puxar determinada informação, puxo errado. Ou, na hora em que puxo, não vem”.


FIM